Carlos Lima Costa reside em Vila Franca de Xira e é investigador e neurologista no Hospital de Egas Moniz em Lisboa
É na pacata localidade do Badalinho, em Vila Franca de Xira, que vive um dos médicos e investigadores portugueses mais reconhecidos internacionalmente. Carlos Lima Costa, neurologista e investigador no Hospital de Egas Moniz em Lisboa, é coordenador de uma equipa responsável por devolver aos doentes paraplégicos e tetraplégicos a possibilidade de voltar a caminhar através de uma técnica inovadora que usa células da mucosa olfactiva para tratar lesões da medula espinal. Chegou a Vila Franca de Xira na juventude, foi premiado pelo seu trabalho em várias partes do mundo e recebeu o prémio de mérito cultural da cidade de Vila Franca em 2005. Nesta entrevista diz-se alarmado com a fuga de jovens investigadores para o estrangeiro, lamenta que Portugal seja um país que não olha para a ciência e confessa que Vila Franca de Xira anda deprimida. Para Carlos Lima o novo hospital da cidade é uma mais-valia. Só lamenta que tenha gestão privada.
Trabalha desde Junho de 2001 no desenvolvimento de uma técnica que permite que pessoas tetraplégicas e paraplégicas voltem a recuperar os movimentos. Como se chega a este resultado?
Com muito trabalho e dedicação, ainda hoje continuamos a aperfeiçoar a segurança e a eficácia do procedimento. Nós fazemos um transplante de células do tecido do nariz, que sabemos ser um tecido que continua a produzir neurónios novos no estado adulto e colocamos na zona da lesão da medula espinal. Mas só isso não chega para que a pessoa se levante da cadeira. Além da operação é preciso fazer muitos anos de reabilitação a seguir. Um doente que faça esses exercícios com regularidade volta a caminhar. Fomos os primeiros investigadores no mundo a demonstrar isso e foi quando tivemos a maior projecção internacional, em 2003.
Quantos doentes já se submeteram ao vosso tratamento experimental?
Até hoje já operámos 150 doentes e continuamos a monitorizá-los. De todos eles cerca de um terço já consegue andar com o auxílio de um andarilho, o que é uma grande evolução face à cadeira de rodas. Mas por enquanto ainda não temos nenhum que ande sozinho sem apoio. Actualmente temos várias colaborações em curso com outros países, um deles com a universidade de Osaka, no Japão, e vamos iniciar outra colaboração em breve na Nova Zelândia.
Esta intervenção pode ser feita a qualquer pessoa ou existem requisitos especiais?
Não. Existem regras e o projecto ainda tem limitações. Filtramos a quantidade de doentes que podem entrar no estudo. Mas mais tarde ou mais cedo será possível fazer esta operação em qualquer hospital da União Europeia.
E quanto vai custar?
A operação em si é gratuita para os doentes portugueses porque é comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde. Os doentes estrangeiros já têm que pagar. Demora entre quatro a cinco horas. O problema é que os hospitais portugueses não estão virados para a investigação, estão virados para a assistência e isso dificulta-nos a vida.
Portugal não é país para investigadores?
De maneira nenhuma. Até é muito difícil investigar em Portugal porque as coisas não estão feitas para isso. É como remar contra a maré. Somos muito limitados, não temos os meios que os outros têm, como é o caso dos Estados Unidos. Trabalhamos com grupos de lá. Curiosamente o último doente que tivemos foi um veterano da guerra do Afeganistão que foi operado no nosso hospital e voltou para os Estados Unidos.
Nos últimos anos os nossos jovens investigadores têm abandonado o país…
Isso é algo dramático que vai sair muito caro a Portugal. Temos uma fuga de cérebros impressionante porque aqui não há condições. Tenho estado em contacto com muitos jovens investigadores que me pedem a possibilidade de voltar e não posso oferecer nada porque um hospital público não está desenhado para isso. Talvez quando o conceito da Europa avançar e funcionarmos como comunidade isso seja possível...
O que se poderia fazer para travar essa fuga de jovens cérebros?
Temos de investir. No que é que somos bons? É no futebol. Eu vou a qualquer lado e de Portugal só me falam do Ronaldo e do Mourinho. Se se investisse em ciência como se investe em futebol garanto-lhe que teríamos grandes cientistas e seríamos os melhores do mundo. A ciência pode dar lucro mas não no imediato. É mais complicada que o futebol e não alimenta as massas. E elas teriam de se elevar intelectualmente para poder compreender o que é a ciência. Infelizmente somos um país que não olha para a ciência. Temos de começar a incutir nas crianças e na escola a importância da ciência. Temos de começar a atrair mais jovens para ela. Que é o que não está a ser feito.
A sua equipa foi recebida no Vaticano pelo Papa há pouco tempo. A religião ainda atrapalha a ciência?
Não acho. Temos muitos católicos que são cientistas. A religião já não colide connosco. Pensou-se que assim seria porque a ciência poderia dar resposta a um conjunto de perguntas que todos fizemos e não as deu. Nem nunca saberemos se vai dar. Por isso aprendemos a viver cada um no seu canto. A religião vive a sua vida e nós vivemos a nossa.
É um crítico das células embrionárias. Estamos a assistir a um embuste da medicina?
Os proponentes das células embrionárias, a maioria dos Estados Unidos, passam a vida a dizer que daqui a 10 anos vão ter resultados. Eu estou contra essas células não apenas por aspectos morais ou éticos mas porque elas não funcionam. As células embrionárias foram feitas para fazer bebés. Quem não compreender isto não vai a lado nenhum. Podem ter algum efeito mas é um efeito indirecto. Por exemplo, se as crianças têm paralisia cerebral, resultado de uma lesão que foi provocada por falta de sangue e se vamos introduzir células que vão fazer novos vasos é natural que haja alguma melhoria. Mas para reparar o sistema nervoso você precisa de células estaminais do sistema nervoso e essas serão as do nariz, como temos provado. Temos de pensar como é que a natureza funciona e fazer o nosso trabalho de acordo com as leis da natureza.
Cultivar células em laboratório era algo que sonhava fazer?
Sempre tive muito interesse no estudo da mucosa olfactiva. A dada altura decidi avançar com investigação. Já publiquei dois trabalhos sobre este processo. Tenho a noção que tenho um trabalho completamente diferente da maioria das pessoas. Trabalho oito horas por dia mas às vezes tenho de fazer umas horas a mais quando temos doentes ou quando estamos a investigar. Neste momento estou um pouco preocupado porque é fim-de-semana e tenho um cultivo de células em curso no hospital. Elas são como as flores, temos de estar sempre atentos senão algo corre mal. E o fim-de-semana preocupa-me sempre porque não temos lá ninguém.
Agora que já têm os primeiros resultados desta experiência já têm outra em mente para o futuro?
É importante que comecemos a usar estas células para outro tipo de doenças. Começámos agora um pequeno ensaio exploratório em doentes com esclerose lateral amiotrófica, que é a doença que vitimou o Zeca Afonso. É uma doença terrível. Estamos a fazer um esforço com essas células dadas a esses doentes. Embora ainda seja precoce avançar com resultados estamos satisfeitos com as primeiras indicações.
É um investigador que trabalha num hospital público. Sente a pressão dos grupos privados?
Nesse campo sentimos muita concorrência com esses grupos americanos que são extremamente fortes e querem fazer crer que as células embrionárias é que vão resolver muitos problemas. Falo de grupos farmacêuticos mas também de empresas ligadas à biotecnologia. O problema é que as pessoas vêem demasiados filmes e vivem num mundo virtual que não tem nada a ver com a realidade.
Já foi convidado para integrar um grupo privado mais poderoso?
Se quisesse ir para os Estados Unidos tinha vários sítios por onde escolher. Hoje em dia graças à internet perdemos a ideia de periferia. Podemos estar em todo o lado do Mundo. Acho que é possível continuar a trabalhar aqui colaborando com o estrangeiro.
Registou recentemente uma patente que lhe permite trabalhar em Portugal.
Sim, tem a ver com os reagentes que se usam para cultivar essas células olfactivas. Fomos nós que descobrimos a maneira de fazer, ou seja, o cozinhado que é preciso para que essas células se possam cultivar. Há uma semelhante nos Estados Unidos e outra na Austrália mas nós temos diferenças em relação a qualquer uma delas, sobretudo na forma de colheita do tecido e da maneira como o cultivamos. Recolhemos sempre em pessoas vivas.
Limitou-se demasiado o número de médicos
No concelho de Benavente existe uma grave carência de médicos que tem prejudicado o atendimento aos doentes. A classe médica tem lidado mal com este problema?
Não podemos fechar os olhos e ignorar os problemas. Há falta de médicos. Tivemos uma política muito errada durante anos e ainda continuamos a ter que é uma limitação nos números de médicos que lançamos para o mercado anualmente. Essa limitação na formação é errada e acho que devíamos dar acesso a toda a gente que queira ser médico, para poder estudar e tirar o curso. Depois logo se veria, a filtragem seria feita depois e não antes. Este procedimento actual levou-nos ao actual estado de coisas. Perdemos nestes anos todos imensos médicos que poderiam ter dado excelentes clínicos. Custa-me também ver os médicos que se reformam logo aos 50 anos e deixam de servir a causa pública.
Se todos ganhavam por que motivo os médicos têm continuado a insistir no anterior modelo?
Não sei. Esta é a minha opinião e é o que acontece noutros países como na Alemanha e Espanha. Primeiro tiram o curso e depois é que entram na concorrência. Ganha-se sempre porque mesmo tendo profissionais que não ficam aqui podem ir trabalhar para outros países onde são muito necessitados. Já não falo na Líbia mas em Angola ou em outros países são necessários.
Como vê o nascimento de um novo hospital em Vila Franca de Xira?
Um dos problemas da cidade foi sempre o velho hospital que não tinha condições físicas para funcionar. O director clínico, Carlos Rabaçal, além de ser um grande amigo, é um excelente profissional e vai fazer um óptimo trabalho.
E concorda com a gestão privada do Grupo Mello?
Choca-me um bocadinho mas apesar de tudo temos de ver quais são os condicionamentos para que se tivesse optado por essa solução. Pelo que sei as coisas nem estão a correr mal. Só o futuro o dirá.
O que acha da localização?
É razoável. É um pouco afastado mas hoje em dia um hospital grande não deve ficar no centro de uma cidade mas sim nas redondezas. Por uma questão prática de espaço.
Células e Rock & Roll
António Carlos Viana Lima Costa nasceu em 1955 em Ponte da Barca. Chegou a Vila Franca ainda na juventude quando o pai foi nomeado para chefiar os correios da cidade. Vivia no próprio edifício dos CTT. Hoje vive numa casa mais espaçosa no Badalinho porque confessa ser uma pessoa recatada que não gosta de se expor. Fez uma especialidade de neuropatologia - o estudo do cérebro “anormal”, como diz - e há cerca de dez anos iniciou a investigação de reparação da medula espinal com células do nariz em doentes paraplégicos e tetraplégicos. A sua equipa foi a primeira no mundo a tentar o feito clínico, o que foi alcançado com sucesso. “Nessa altura ainda se começava a falar dos primeiros transplantes de células estaminais”, explica. Já teve dois artigos publicados em revistas internacionais de ciência.
Desloca-se todos os dias de carro para Lisboa e durante a viagem ouve as notícias. Tem um piano na sala onde nos concedeu a entrevista e um busto de Beethoven. Contudo assume-se como um fã de rock pesado. Deep Purple, Whitesnake ou ZZ Top.
“Quando era novo montei com uns amigos um grupo musical em Vila Franca, os Erupção, na altura tocávamos tudo e mais alguma coisa”, conta. Era o vocalista e foi o único a enveredar pela medicina. Os colegas de banda ainda hoje são músicos de profissão. Vasco Gil (pianista), Tó Andrade (baixista) e Carlos Augusto (guitarrista).
Nos tempos livres gosta de nadar. Garante que é o seu hobby favorito. “De resto tenho tanta coisa para fazer que acabo sempre em coisas ligadas à profissão, leio muito”, partilha. Na sua biblioteca tem, além dos livros, as várias distinções que recebeu, incluindo a da cidade de Vila Franca de Xira, em 2005. O que o irrita solenemente é a estupidez. “Às vezes vejo coisas tão aberrantes e estúpidas que custa a acreditar que estejam a acontecer à minha volta”, diz. Custa-lhe ver o estado a que o país chegou. Foi um partidário do 25 de Abril que viveu fervorosamente a revolução mas que hoje está desiludido. “E andei de cravo ao peito”, confessa.
Não é um fã de touradas embora dê valor à tradição da festa brava. “Compreendo que há uma tradição e que as coisas não podem ser terminadas de um momento para o outro. Mas a Catalunha já aboliu as touradas portanto há aqui alguma coisa que está a mudar. Acho a tourada portuguesa mais humana ao não matarmos o toiro e ao colocar os forcados e o toiro em conflito directo, honesto e claro”, defende.
Vila Franca de Xira é uma cidade “deprimida” que precisa de ideias novas
Vila Franca de Xira é uma cidade “deprimida a todos os níveis”, na opinião de Carlos Lima Costa. “Eu estive na Alemanha em 1995 e quando voltei fui ao centro comercial que nasceu em frente ao tribunal. Aquilo era uma festa tremenda, sentia-se uma emoção. Hoje vamos ao centro e ficamos muito preocupados. Compreendo que não é a presidente da câmara que tem a culpa porque há muitos factores externos a Vila Franca mas há coisas que me custam a ver”, refere a O MIRANTE.
O médico e investigador considera que Maria da Luz Rosinha foi determinante em muitos aspectos da política municipal e do desenvolvimento da cidade mas lamenta que hoje em dia só venha à cidade quem precisa. “Para atrair as pessoas temos que oferecer alguma coisa que seja única e de momento não temos muito. A parte relacionada com os cavalos atrai muita gente, Vila Franca tem experiência e muito para mostrar nesse campo. A tauromaquia a mesma coisa. Mas há que pensar em coisas de futuro. É preciso ideias novas”, refere.
Quando tem que deslocar-se ao centro da cidade vai de mota para evitar o trânsito e estacionar com mais facilidade. O clínico defende que quando as obras de requalificação da frente ribeirinha estiverem concluídas a cidade vai ganhar qualidade de vida. “Não esqueço as raízes minhotas mas vivo em Vila Franca há tantos anos que já me considero um vilafranquense”, refere.
O Mirante
Morreu o investigador Carlos Lima Costa