Na Espanha do século III a.C., a caça aos touros selvagens já era um esporte popular, com raízes em cultos religiosos ancestrais. “O animal era celebrado como deus da fertilidade pelos povos mediterrâneos da Antiguidade. Antes dos casamentos, o ritual exigia que o noivo matasse um touro para invocar uma união próspera”, diz o antropólogo holandês Marco Legemaate, especialista no assunto. No início da Idade Média, por volta do século V, a matança do bicho havia se consagrado, na península Ibérica, como exercício de coragem e destreza e os touros eram perseguidos até a exaustão por multidões, também comemorando casamentos, nascimentos e batizados. Algo parecido ocorre até hoje na festa de São Firmino, em Pamplona – onde, todo ano, mais de 2 mil pessoas correm dos touros soltos nas ruas da cidade espanhola – e na famigerada Farra do Boi, aqui mesmo no Brasil, em Santa Catarina.
Mas o registro mais antigo de algo semelhante às touradas atuais só aparece em 1135, como parte dos festejos da coroação de Afonso VII, rei de Leão e Castela. Nessa época, porém, o toureiro era um nobre que enfrentava o touro montado a cavalo e armado de uma lança. “Esse era o teste supremo na preparação dos cavaleiros medievais espanhóis”, afirma Legemaate. Para os plebeus, restava o papel de escudeiro, que, a pé, ajudava a liquidar o bicho. Esses papéis seriam invertidos numa surpreendente reviravolta histórica. Com a chegada à Espanha da dinastia francesa dos Bourbon, no início do século XVIII, a nobreza local abandonou diversões rústicas como essa para se entregar aos prazeres da corte, deixando a arena livre para camponeses e boiadeiros criarem a tourada moderna. Resultado: o antigo escudeiro assumiu o papel principal de toureiro e o cavaleiro passou a ser o mero coadjuvante que ajuda a minar a resistência do animal.
“Aí começam a surgir o repertório de técnicas e manobras e o conjunto de regras que definem a tourada como arte popular”, afirma Maria de La Concepción Valverde, professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo (USP). A figura-chave nesse processo, ainda no século XVIII, foi o lendário Francisco Romero, o primeiro toureiro profissional, creditado como introdutor da espada, para liquidar o touro, e da muleta, uma capa de tourear menor. Entre 1910 e 1920, a tourada atingiria seu apogeu como febre nacional, estimulada pela rivalidade entre Joselito e Belmonte, famosos por criarem novas manobras espetaculares. Hoje, as 325 arenas espanholas são palco de 17 mil touradas por ano, movimentando mais de 1 bilhão de dólares e empregando 200 mil pessoas – quase 1% da força de trabalho do país. Mas, para os movimentos de defesa dos animais, tudo não passa de tortura sádica. “O sofrimento do touro é explícito, com muita perda de sangue”, diz António Abel Pacheco, do Movimento Anti-Touradas de Portugal.
Sangue e areia
A luta entre homem e animal é de vida ou morte
1. No início, a única defesa do toureiro é o capote, capa vermelha de forro amarelo. Incapaz de distinguir cores, o bicho é atraído pelo movimento do pano – o vermelho só serve para disfarçar as manchas de sangue. A manobra fundamental é a verónica: o toureiro segura o capote com as duas mãos e dribla o animal com um recuo de pernas
2. Especialmente treinados para a batalha, os touros pertencem à espécie selvagem mais feroz que existe: Bos taurus ibericus. Eles ficam no mínimo três anos em cativeiro à espera da arena, mas nem os sobreviventes retornam a ela: os touros têm uma memória tão impressionante que poderiam fugir de uma segunda luta
3. Enquanto o matador cansa o touro, entram em ação os picadores, cavaleiros com lanças que espetam o animal para diminuir a força dos músculos do pescoço e das patas dianteiras. Três estocadas bastam para o touro perder quase 2 litros de sangue. Mesmo vendado e protegido por lonas de algodão e camurça, o cavalo também sai ferido com os ataques
4. Outros ajudantes do toureiro, os banderilleros, fincam varas com ponta de arpão na traseira do pescoço do touro, região cheia de terminações nervosas. O objetivo é enfurecer o bicho para o final da luta. Em geral, seis banderillas são cravadas, uma para cada ataque do banderillero, que atua sem proteção
5. No final da luta, o matador enfrenta o touro com a muleta, uma capa vermelha de apenas 56 cm de largura montada num bastonete de madeira, toureada com apenas uma das mãos. Com o toureiro cada vez mais próximo do bicho, as manobras ficam mais arriscadas
6. O toureiro coloca o animal na posição ideal para o sacrifício, distraindo-o com a muleta e mantendo-o de cabeça baixa e com as patas dianteiras unidas. Assim, fica descoberto o “olho das agulhas”, região entre os ossos na junção do pescoço, que deve ser atravessada com a espada para que o touro tenha uma morte rápida
7. Se a lança de 90 cm de aço atinge a aorta do bicho, a morte é instantânea. Ao todo, a luta dura cerca de 45 minutos e, para o toureiro, o prêmio máximo para um desempenho excepcional é receber as orelhas e a cauda do animal. Pela tradição, os animais mortos são vendidos a açougues depois de retirados da arena
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