Aos 16 anos, Diogo Peseiro não tem grandes dúvidas sobre a sua vocação: "O toureio é uma arte que eu amo. Desde sempre que está presente no meu corpo". Começou a aprender as lides do toureio apeado aos cinco anos, mas uma operação cirúrgica fê-lo parar por algum tempo. Agora aposta tudo no desejo de ser matador. "Entrei na Academia do Campo Pequeno há um ano e tenho sentido uma grande evolução. A escola está a dar-me excelentes oportunidades para concretizar os meus sonhos."
Diogo faz parte do grupo de cerca de 20 alunos que aprende na Academia de Toureio do Campo Pequeno, em Lisboa. Sob a orientação dos maestros Rui Bento Vasques e José Luís Gonçalves, ambos antigos matadores, jovens dos oito aos 21 anos lutam por um lugar na arena, onde sabem que só os melhores conseguem chegar. "Sabemos que a maior parte destes jovens não vai chegar a matadores. É um mundo muito competitivo e as oportunidades são poucas. Mas, pelo menos, temos a certeza de que vão sair daqui novos aficionados da festa brava, que ajudarão a que esta arte continue viva em Portugal", explica o maestro José Luís Gonçalves, de 46 anos, que se retirou em 2010.
ESCOLAS UNIDAS
Os jovens talentos do toureio a pé têm agora uma nova oportunidade de se mostrarem ao grande público. A Academia do Campo Pequeno juntou-se à Escola José Falcão, de Vila Franca de Xira, e à Escola de Toureio da Moita para fazerem uma série de 12 novilhadas integradas em corridas de touros. A primeira acontece já este domingo, dia 6 de Maio, em Vila Franca de Xira. Ao longo da temporada, as novilhadas vão passar pelas praças da Moita (26 de Maio), Arruda dos Vinhos, Salvaterra de Magos, Montijo (todas em Junho), Alcochete, Coruche, Caldas da Rainha (Agosto), Montemor-o-Novo, Nazaré e Sobral de Monte Agraço (Setembro). A grande final acontece no Campo Pequeno, em Lisboa, a 27 de Setembro.
Por estes dias, os alunos das três escolas intensificam os treinos para mostrar a sua galhardia na arena. Em Vila Franca de Xira, a Escola José Falcão é a mais antiga do País. Fundada em 1984, usa o nome de um dos maiores matadores de touros portugueses. José Falcão morreu em 1974, mas o seu nome perdura na memória dos aficionados.
Hoje, os oito alunos da escola têm por maestro Vítor Mendes, matador ainda no activo, com uma carreira de quase 40 anos nas arenas. Tal como nas outras escolas, o treino de salão (na arena, com modelos que simulam o touro) completa-se com visitas ao campo. É nos tentaderos - sessões organizadas pelas ganadarias em que os novilhos são postos à prova para se testar a sua bravura - que os jovens toureiros têm as primeiras oportunidades de enfrentar um animal.
TOUROS NO CAMPO
A Herdade da Adema, propriedade da famosa ganadaria Palha, foi o cenário de um desses tentaderos, em que participaram cinco alunos da Escola José Falcão. Na presença do maestro Vítor Mendes e de um matador espanhol, entre outros convidados, Tiago Santos, de 19 anos, foi um dos que teve oportunidade de tourear na arena da herdade. "Comecei aos 11 anos, quando o meu pai me levou à escola do Montijo. Hoje estou na categoria de novilheiro sem picadores, mas espero chegar ainda este ano a novilheiro com picadores." O próximo degrau é ser matador de touros. Então poderá trocar os novilhos (touros com menos de três anos) por animais adultos e peso superior.
Em Espanha - pátria incontornável para quem quer fazer uma carreira no toureio a pé -, os jovens têm a oportunidade de ir à arena e matar novilhos desde cedo. Tiago Santos aproveita todas as oportunidades. "No ano passado fiz 20 corridas. Toureei em Espanha, França e na América." São 32 os animais que morreram às suas mãos. "Matar um touro é uma mistura de vários sentimentos. Sentimos que nos superamos a nós próprios, é inexplicável." Apesar da muita experiência acumulada, Tiago não sabe ainda quando poderá ascender à categoria de matador: "Este é um mundo mais de vencidos do que de vencedores. Chegar a matador é sentir-se preparado. É preciso estar à altura." Com o 12º ano feito, aposta tudo na carreira tauromáquica. Não põe de parte a ideia de ir para a universidade, mas para já concentra-se nos touros.
Vítor Mendes é severo com Tiago na arena. Corrige-o à frente de todos, irrita-se quando o vê fazer gestos incorrectos. No final, explica que não há espaço para paternalismo ou paninhos quentes no toureio. "Só somos exigentes com aqueles que têm talento. Para se ser matador é preciso procurar a perfeição."
Outro aluno da Escola José Falcão é Pedro Noronha, de 17 anos (que estará hoje na corrida de Vila Franca de Xira). Nascido em Lisboa, conta que desde pequeno vai às corridas com os pais. Entrou na Escola José Falcão em Setembro de 2007 e hoje é novilheiro sem picadores. "Desde pequeno que gosto da arte do toureio a pé." Já fez novilhadas e espectáculos de variedades taurinas, mas ainda não teve oportunidade de matar um novilho: "Sei que esse dia virá". Pedro sublinha a importância das visitas às ganadarias: "Podemos estar mais perto do touro e ver o seu comportamento no campo. Temos também a oportunidade de tourear um animal, o que é fundamental para a nossa formação."
DO CAVALO PARA O CHÃO
Foi para conhecer melhor os terrenos do touro que Maria Mira, de 21 anos, entrou para a Academia do Campo Pequeno. "Comecei por tourear a cavalo em 2007. Neste momento sou praticante. Sempre gostei muito do toureio a pé e para mim é essencial saber tourear a pé para fazê-lo bem a cavalo", explica. Maria aprendeu a montar com o pai, mas demorou até que os pais se convencessem da sua vontade. "Sempre disse que queria ser toureira, mas ninguém me levava a sério. Só quando fiz 16 anos é que o meu pai percebeu que estava mesmo convencida disto."
Maria Mira espera seguir os exemplos de Ana Batista e Sónia Matias, duas cavaleiras portuguesas que se impuseram num mundo normalmente associado a homens. "O meu grande objectivo é tirar a alternativa como cavaleira, mas não ponho de parte a hipótese de me dedicar ao toureio a pé. Veremos o que o futuro me reserva", explica esta estudante de Línguas, que vem de Évora todas as semanas para treinar no Campo Pequeno, em Lisboa.
TRADIÇÃO NA MOITA
Terra de aficionados, a Moita já teve várias escolas de toureio a pé. A Escola de Toureio e Tauromaquia da Moita abriu há um ano e conta com um filho da terra para ensinar os mais novos. Luís Procuna, de 29 anos, é matador há nove. Aprendeu ali na Moita e fez-se matador em Espanha, onde tirou a alternativa e onde passa grande parte do ano. "Para se ser matador é preciso passar por Espanha. Só lá se pode matar o touro na arena, é a pátria por excelência do toureio", explica o matador. Com a ajuda do bandarilheiro Júlio André, ensina aos cerca de 30 alunos as três artes do toureio a pé - o capote, as bandarilhas e a muleta. Esta última esconde a espada, usada para matar o touro na arena, manobra proibida em Portugal.
João Rodrigues, de 16 anos, é um dos jovens mais promissores da escola, numa terra que já formou matadores como Nuno Manuel ‘Velásquez' ou Sérgio Santos ‘Parrita'. Ambos tiveram de deixar a carreira de matadores pelas bandarilhas, sinal da extrema competitividade de uma profissão de elite. João dá os primeiros passos da sua caminhada: "Já participei em nove corridas, sempre em Portugal. Gostava de seguir esta arte e de ser um matador de touros." Nascido no Montijo, o irmão mais velho foi forcado mas abandonou a vida taurina. Empenha-se nos treinos, três vezes por semana, para alimentar o sonho de ser matador. "Sei que tenho de ir para Espanha para triunfar, mas estou preparado para isso."
Ainda não tem o traje de luzes, o fato que os toureiros levam à arena. Feito em Espanha, um traje custa entre três a seis mil euros. Um investimento grande que um toureiro terá de fazer para vingar num mundo em que se pode ganhar muito dinheiro, mas ao qual só os mais capazes têm acesso. João Rodrigues quer estar entre eles.
ESCOLA ESPANHOLA
O colega Diogo Damas, de 19 anos, fez um percurso diferente. Começou aos nove ano na Escola de Toureio da Azambuja (ainda em actividade). Há dois anos esteve na cidade espanhola de Badajoz, numa escola exclusivamente dedicada aos touros. "Lá era diferente. Éramos 90 alunos, treinávamos todos os dias, fazíamos muitos tentaderos e íamos à arena." Diogo aprendeu o que é ir à arena e enfrentar a apreciação do público. Matou novilhos em arena. "É uma sensação diferente, o público reage com muita intensidade ao que fazemos. Quando se mata um touro, submetemo-nos ao julgamento das bancadas. Se as pessoas acenarem um lenço branco, é sinal de que triunfámos. São-nos então dadas as orelhas do novilho. Se falharmos, o público guarda os lenços e saímos da arena sem nada. A mim aconteceu-me de tudo, houve dias melhore e outros piores."
As diferenças também se notam no treino: "Na escola espanhola somos treinados para entrar a matar, que é a parte mais difícil. Aqui o treino é mais diversificado, treinamos o capote, as bandarilhas e a muleta." Outra diferença é o modo como se tratam os animais: "Em Portugal não se pode picar o touro, e por isso a investida é muito mais bruta. Os touros picados em Espanha investem com mais suavidade, ficam mais fáceis de trabalhar", explica Diogo Damas.
GÉMEAS BEM DIFERENTES
Na arena da Moita destacam-se duas raparigas praticamente iguais. Paula e Ana Santos, de 13 anos, treinam na escola da Moita há um ano. Paula não tem dúvidas: "Eu quero ser matadora. Desde que me conheço que já não vejo outra coisa. Gosto muito disto". Conhece o pior lado do toureio a pé: "Já levei muitas cornadas. Custa, mas o importante é voltarmos." Apesar do ar franzino, já mostrou valentia a enfrentar vacas no campo. A irmã gémea está menos convencida. "Ainda não sei o quero fazer. Mas gosto mais de cavalos, se pudesse seria cavaleira. Ainda estou à procura de uma pessoa que me ensine."
Outra colega de escola mostra que as portas das arenas estão abertas às mulheres. Ana Marques, de 14 anos, também está na escola desde a abertura. Gosta das lides dos touros, mas para ela o futuro não será por ali. "Estou aqui para aprender mais. Sempre tive medo de touros, mas convidaram-me para vir experimentar e gostei. Mas não quero seguir esta carreira. Tenho medo de ser apanhada e ficar ferida e quero seguir carreira na representação." Uma cornada de uma vaca, uma voltareta na linguagem dos toureiros, deixou-lhe marcas no corpo e na mente. "Fiquei com uma grande nódoa negra nas costas, os meus colegas de escola disseram-me que eu era maluca por andar aqui." O seu futuro não deverá passar pelas arenas, mas garante que a aprendizagem do toureio vai deixar marcas: "O gosto pelas corridas de touros vai durar sempre."
O maestro Luís Procuna sublinha a importância de haver raparigas a querer aprender. "É muito bom, até para as mulheres verem que o mundo das touradas não está fechado nos homens. Há muitas mulheres de classe nas arenas." A espanhola Maria Paz Vega é hoje a mais conhecida matadora de touros. Em Portugal, há muito que não se vê uma mulher tourear a pé. Os mais velhos lembram Ana Mendia, da Azambuja, que brilhou nas arenas nos anos 70.
Na escola estão desde crianças de seis anos a adolescentes à beira da maioridade. As taurinhas - estruturas com cabeça de touro e rodas de bicicleta usadas para treinar as manobras com os touros - fazem as delícias dos mais novos, mas o treino é exigente para todos. "Fazemos treino físico durante uma hora e mais duas de exercícios com os pitons (cornos) e as taurinhas. Há três treinos por semana, mas no Verão abrimos a praça todos os dias. É fundamental estar no melhor da forma", explica o bandarilheiro Júlio André, um dos professores da escola da Moita.
ARTE CONTESTADA
Nos últimos anos cresceram os movimentos que defendem o fim das touradas, vistas por estes militantes como um espectáculo cruel para com os animais. Os que agora se iniciam no toureio sabem que aquilo que fazem é criticado por muitos, mas isso não os demove. Tiago Santos, da Escola José Falcão, pede mais respeito a quem contesta as touradas: "Eu percebo porque é que há pessoas que dizem que a tourada é um espectáculo bárbaro. Estão no seu direito. Desde que não tentem prejudicar-me a mim e aos meus não me importa. Mas gostava que as pessoas percebessem a razão das coisas. Era bom que procurassem entender esta arte. Há quem prefira a morte do toureiro à morte do touro e isso não posso aceitar."
Em Espanha e em Portugal várias vilas e cidades declaram-se antitaurinas. Vítor Mendes tirou a alternativa como toureiro em Barcelona, praça hoje fechada. "É uma questão política, mas tenho a certeza de que a praça vai reabrir em breve", diz o matador português.
Luís Procuna aponta a fraca capacidade de resposta do mundo taurino aos ataques de que têm sido alvos. "Os movimentos de defesa dos animais estão unidos na contestação. Nós, que vivemos da tourada, pouco fazemos para nos unirmos na sua defesa. Fala-se muito, mas faz-se pouco para responder aos ataques."
Ninguém espera que em Portugal se altere a lei que proíbe a morte dos animais na arena. Quem quer ser matador tem de ir para Espanha. O sul de França e os países da América Latina são uma extensão natural de um mercado que conta com milhões de aficionados. Em Portugal, o toureio a pé tem perdido terreno para os cavaleiros e forcados. "Não é possível fazer mais de 25 corridas por ano. Espero que venha uma nova geração que possa contribuir para mudar as coisas", diz o matador Luís Procuna.
"O MAIS IMPORTANTE É FORMAR AFICIONADOS"
(Vítor Mendes, 54 anos, matador de touros desde 1974, ensina na escola José Falcão)
Nasce-se matador ou treina-se para se ser matador?
- Creio que se nasce matador. Para se chegar ao nível mais alto tem de ser ter uma qualidade e um talento inatos. O resto faz-se pela aprendizagem.
Estamos a viver uma crise de novos valores no toureio a pé?
- Para descobrirmos novos talentos temos de ir à mina e escavar à procura de pedras preciosas. É preciso criarem--se oportunidades. Dos 40 miúdos que estão inscritos nas escolas de Portugal, julgo que haverá quatro ou cinco com qualidade para chegarem mais longe. Houve uma sequência no toureio a cavalo, em que as novas gerações sucederam às anteriores. No toureio a pé surgiram três ou quatro nomes, que por uma série de razões acabaram por não vingar.
Os jovens percebem que estão a querer entrar num mundo altamente competitivo, que os obriga a ir para Espanha?
- Não podemos olhar só para as escolas de toureio com o objectivo de formar novos profissionais. Estamos a formar jovens com conhecimento do toureio, o que é muito importante. Importa que sejam bons aficionados e que se entusiasmem com os touros.
Como tem corrido esta nova experiência como formador?
- Aqueles que chegam à escola têm origens sociais e valores muito distintos entre si. Tem sido gratificante verificar o empenho deles em aprender.
NOTAS
CICLO
As 12 novilhadas levam às arenas os alunos das três principais escolas portuguesas.
ESCOLAS
Na Azambuja e em Alter do Chão também existem escolas que ensinam as artes do toureio.
ESPANHA
Nas academias espanholas, os jovens estão em regime de internato. Dedicam todo os dias aos touros.
Veja o vídeo
Fonte
Fonte
Sem comentários:
Enviar um comentário