«Esta é a pergunta que alguns fazem perante a pretensão da abolição das corridas de touros em Portugal. “Com tantos problemas que há actualmente, com tanta gente na miséria, com tantos animais que sofrem em canis, gatis, na rua, nos matadouros, por que deveríamos preocupar-nos com as touradas? Não há outras vítimas cujo sofrimento pede uma atenção mais urgente?” Estas são as questões com que portugueses preocupados se debatem – e são os argumentos a que os apoiantes da tauromaquia recorrem para adiar o problema, para promoverem a resignação, para sacudirem responsabilidades.
Na verdade, o verdadeiro problema é precisamente o oposto: não podemos corrigir questões de fundo deixando o óbvio a descoberto. Se o problema de fundo é a protecção das vítimas sem voz, não há maiores vítimas que os animais, que dependem totalmente de nós para defendê-los. Se o problema de fundo são os inúmeros animais que, sem o nosso conhecimento, sofrem com fome, maus-tratos e abandono, como poderemos nós abordar esse problema sem antes lidar com um acto de tortura que é feito à vista de todos, que é publicitado e com o qual alguns ainda ganham dinheiro?
Em casa de ferreiro, espeto de pau? Será que queremos o bem dos animais, mas permitimos que sejam torturados perante os nossos olhos?
Fazendo parte de uma sociedade moderna, será que queremos mesmo garantir que os animais sejam respeitados, permitindo simultaneamente que um grupo de pessoas chacine touros num anacrónico ritual que consideram lúdico? Poderei eu, de consciência tranquila, ajudar um pobre animal encontrado na rua, sabendo que a televisão transmite a prática de tortura activa contra animais?
É aqui que o conflito se torna incontornável. É aqui que percebemos que princípios humanos fundamentais – como a bondade, a compaixão e o respeito pela vida – são directamente violados pela prática tauromáquica.
É aqui que as prioridades se tornam evidentes: a tourada é o mal maior, é o rosto mais visível do pior que o ser humano tem, é a materialização dos instintos mais primitivos, grotescos, sádicos e sanguinários que sempre nos envergonharam.
Todos os anos, milhares de touros e cavalos morrem desnecessariamente nas arenas, vítimas de um ritual de vaidade e ostentação, apreciado por uma minoria e repudiado pela maioria. Os promotores tauromáquicos insistem em chamar-lhe cultura nacional. Eles, os verdadeiros interessados em perpetuar este macabro espectáculo, invocam a tradição e a cultura como justificação. A tradição da violência já não tem lugar nos nossos dias.
Cultivar o embrutecimento humano e os maus-tratos contra os animais também não. Alegam, ainda, que a tauromaquia movimenta dinheiro, que dá trabalho. Pois bem, uma significativa parte desse dinheiro sai do nosso bolso, da população portuguesa, em forma de fundos atribuídos por entidades europeias de financiamento à agricultura, canalizados através do Governo, das autarquias e juntas de freguesia. É, portanto, dinheiro que faria falta em causas como o ensino, a saúde, o apoio social. Mas não, é desviado para a tortura. Quanto aos empregos? Raras são as pessoas em Portugal que têm na tauromaquia a sua única actividade profissional. A tauromaquia é uma actividade sazonal, que não precisa de praticantes a tempo inteiro, que recorre, essencialmente, a amadores e voluntários.
Ironicamente, e apesar da tentativa de colar a tauromaquia a uma prática cultural nacional, a verdade é que as corridas de touros surgiram no panorama nacional através da Espanha. E é por esse motivo que a tauromaquia em Portugal está repleta de elementos castelhanos, desde os termos usados na tourada, aos trajes e à música. A tourada não é, portanto, uma prática nacional.
Posto isto, chegamos ao motivo pelo qual a tourada deve ser abolida. Percebemos agora a natureza prioritária da abolição da tourada em Portugal. Se queremos conviver em paz e harmonia com os animais, comecemos por não permitir que os torturem perante o nosso resignado olhar. Abolir a tauromaquia em Portugal terá um papel fundamental na nossa afirmação como povo evoluído, sensível, eticamente correcto. Será pedagógico, ensinará às futuras gerações que nós, como povo, a dada altura da nossa história nos unimos para defender vítimas inocentes, mudas, indefesas.
Tenhamos a coragem de tomar uma posição convicta e declarada contra a barbaridade, contra as práticas que embrutecem um povo e vitimizam os inocentes. Tenhamos a bondade e o altruísmo de defendermos para os nossos semelhantes aquilo que para nós próprios quereríamos.
Saibamos definir prioridades. Porquê a tourada? Porque é o mais evidente desrespeito pela vida animal que ainda tem lugar em Portugal. Porque torturam animais – touros e cavalos – perante a nossa passividade, sem pudor, sem respeito. E porque, até agora, nós deixámos.
Deixámos!»
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